Por aí, de bicicleta, a ver montras
Andar de bicicleta é algo que se aprende na infância e depois se tende a largar durante algum tempo, retomando de quando em vez no tempo de lazer mas raramente se considera possível como meio de transporte.
Em 2011, participei numa conferência sobre a história da bicicleta e do ciclismo em Paris que, no regresso, me levou a transformar o meu próprio quotiano de vida, trocando o automóvel por uma bicicleta dobrável Brompton. Foi em Paris que conheci uns colegas franceses que utilizavam este modelo espantoso de bicicleta e, tal como eles, passei a ir para a Faculdade de bicicleta e comboio.
Quando comecei a usar a bicicleta combinada com o comboio descobri, na deslocação para o trabalho, um tempo de exercício físico, um tempo para me dedicar à fotografia e, no comboio, um tempo para ler. Em meio ano paguei a bicicleta, com a poupança da portagem, do gasóleo e menos uma revisão ao ano.
Depressa aprendi a estar sempre visível: colocar-me à frente dos automobilistas nos semáforos para todos darem conta da minha presença. O capacete é, neste caso de viagem urbana, uma falsa protecção porque passa a ideia errada de que estou protegida no embate com um automóvel e, de facto, não estou. Da experiência de mais de cinco anos, descobri que de blazer e a luz traseira sempre acesa são as duas melhores formas de provocar nos motoristas admiração e respeito – sabem que estamos todos a deslocar-nos para ir trabalhar.
Ciclovia do Guincho – no trajeto casa-trabalho
Com a minha Brompton os trajetos passaram a ser planeados dia-a-dia devido à vantagem de ter uma bicicleta que se encolhe e quase se mete no bolso na hora de andar de comboio, de metro ou até à boleia de carro com amigos. Criei o álbum “de bicicleta por aí a ver montras” porque ando agora na velocidade ideal que me permite a qualquer momento parar para fotografar. No meu caso, como larguei a A5, passei a usar os caminhos da vila, a ver outras montras, as do comércio da baixa de Cascais.
A velocidade da minha bicicleta não mete medo a ninguém e é tão atraente que puxa conversa com muitos desconhecidos. A principio, a medo, ainda andei sobre os passeios mas farta dos carros que permanentemente lá se encontram estacionados passei de vez para a estrada. Passar para a estrada foi um salto de fé, e o medo face a este mundo familiar mas desconhecido era tanto que me lembrou o momento ímpar em que pela primeira vez consegui o equilíbrio na bicicleta sozinha. Estava por conta própria e foi uma alegria, tinha vencido o medo que mais não era do que vencer o desconhecido. Depois de 400 km por mês, com o desenho das estradas de Cascais nos músculos das pernas, já digo como o outro: “o medo é uma cena que não me assiste”.
Vivi na Holanda no início dos anos 90 e tinha, como todos, uma bicicleta velha para não ser roubada. Andar de bicicleta nesse tempo e nesse espaço nem sequer dava uma crónica destas porque é tão corriqueiro que não haveria mote para a animar. A Holanda é plana enquanto que grande parte do território de Portugal tem serras e colinas mas, não obstante, temos hoje bicicletas eléctricas que tornam a orografia plana.
Através da bicicleta comecei a ver o mundo que me rodeia de outra perspectiva. Os shopings colocados nas saídas da A5, no cimo de Oeiras e em Alcabideche, lugares onde dificilmente vou de bicicleta, longe dos centros das vilas onde agora passo, são indicadores de como se criaram condições que geraram a dependência do automóvel. Na Holanda não se pode fazer um centro comercial longe de um nó de transportes públicos e o estacionamento automóvel é muito bem pago. Este é só apenas um exemplo de como as políticas publicas de ordenamento do espaço de uma cidade podem ser determinantes ao condicionamento à escolha do meio de transporte a utilizar no dia a dia.
Acompanhei o esvaziar de valor do mercado de Oeiras em prol do recrudescer do Shopping Oeiras Park. Só para dar um exemplo: parte das vendedoras de peixe do mercado, patroas do seu próprio negócio, sem freguesia (clientes que passaram a ir ao Oeiras Park porque, para além de outras lojas, também têm estacionamento gratuito) passaram a ser empregadas da grande cadeia de supermercados mudando para o estatuto de assalariadas. Com as lojas de roupa do Shopping aconteceu algo parecido - temos muitas de cadeias multi-nacionais com muitos empregados a ganhar salários mínimos. Fora do circuito automóvel ficaram, não só o mercado, como as lojas da vila. Grosso modo, devagar damos cabo do pequeno patronato e criamos uma massa de assalariados de grandes marcas multinacionais.
Ao nível nacional, a rede de estradas cresceu muito enquanto que ferrovia, com o fecho de grande parte de ramais em 1990, tem vindo a definhar. Vinga agora o transporte Rodoviário não só nos grandes trajetos como nos pequenos, nomeadamente ao nível do transporte privado nos percursos pendulares casa - trabalho. As estradas vistas, muitas vezes, como formas de integração dos pequenos lugares no todo nacional não conseguiram esse intento. Temos vindo a assistir à desertificação de grande parte do interior do país porque não estão garantidas as condições de autonomia e sustentabilidade de cada vila e nem de cada região.
Com o projeto Dar a Volta ao uso da bicicleta realizei o primeiro percurso da Volta a Portugal em bicicleta que data de 1927, com cerca de 2000 km. Fiz todas as etapas, algumas duas vezes, de pedelec (bicicleta com assistência eléctrica). Com este tipo de bicicleta qualquer um pode fazer dar a volta a Portugal, não tem de ser atleta mas pode vir a tornar-se porque à medida que os quilómetros avançam a condição física também melhora e vamos necessitando de menos ajuda. O motor da bicicleta está nos pedais e este só ajuda se pedalarmos. Se paramos de pedalar a bicicleta pára. Com este projeto pretendo questionar a mudança social ocorrida ao longo de 90 anos tendo como foco os usos da bicicleta e, essencialmente, mostrar como a viagem de bicicleta tem um valor económico e social para os pequenos lugares. A viagem de bicicleta começa no momento em se parte, todo o percurso interessa e não só o lugar de chegada. De bicicleta investe-se economicamente e emocionalmente em todos os lugares atravessados.
Ciclovia que liga Monção a Caminha - cerca de 47 km de sossego à beira do rio Minho