Mobilidade e Lazer
A bicicleta questiona desequilíbrios
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Decorreu no passado dia 15 de Fevereiro de 2012, na FMH-UTL, um dia dedicado à Bicicleta para questionar (des)equilíbrios dos modos de vida , do corpo (exercício e saúde), da relação homem – natureza, da energia e economia sustentada . Em dívida para todos os que participaram decidi não fazer um resumo que seria sempre pobre face à riqueza das intervenções mas, ao invés disso, uma crónica inspirada pelas ideias deste dia.
Vou então começar, seguindo o mote de Joaquim Pais de Brito, pelo objecto físico, a bicicleta em si, agarrando o momento crucial da sua própria génese histórica que foi a invenção da corrente (em inglês o termo é mais bonito – the chain). Foi a corrente que permitiu dar velocidade ao movimento, criando uma cadeia de transmissão de força potenciando e impelindo a invenção das mudanças. Do mesmo modo, a conferência impeliu-nos, como a corrente, a pensar a bicicleta como lugar de invenção e mudança social. E o professor de antropologia mostrou como é que a bicicleta induz efeitos na mudança de mentalidades pela forma como nela nos tendemos a equilibrar e a comunicar uns com os outros.
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A corrente devolveu à bicicleta o equilíbrio essencial ao deslocamento veloz, destronando o modelo de roda alta que literalmente, pelas quedas provocadas, tanta dor de cabeça deu. Vejam nesta alteração o valor, ainda que alegórico, de como a velocidade conseguida à custa do aumento de uma das rodas é tão perigoso. Pensem na China e na sorte do planeta caso a opção política siga o exemplo português e a cada chinês dê um carrinho. Foi também destes desequílibrios que Carlos Neto falou quando mostrou parques infantis fofos, afastados das casas das crianças que os utilizam de modo a que estas tenham sempre por perto o olhar dos pais e, ao cair, ter logo alguém para as amparar de modo a não rasparem os joelhos. E, depois, vamos querer que estas crianças andem de bicicleta? Mas isso cansaria os miúdos! Já para não falar do calor e do frio, coitadinhas das crianças e dos jovens. Vamos então, de imediato, dar-lhes já um carrito aos 16 anos. E a questão é se vamos todos, em uníssono, ajudar a crescer a roda da mobilidade automóvel e reduzir o mais possível a roda da mobilidade sustentada que, entre outros pormenores, até salva da queda o planeta por inteiro?
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Voltando à história, a velocidade accionada pela corrente retira a bicicleta do espaço exclusivo da bizarria e do divertimento dos elegantes e vai ser dada a quem tem mais força para a mover, não que a intenção provenha de alguma democracia até porque este baixar de tronco e de cabeça na corrida, que evoca a postura do corpo operário fabril, levará a bicicleta a ser chamada de cavalo do pobres. Foi também sobre a pobreza que Joaquim Pais de Brito falou, algo endémico que vem desta distinção bacoca que, digo eu, procura no hipódromo e, logo depois, no autódromo uma identidade ansiada inspirada, primeiro, nas capas das revistas estrangeiras a que poucos tinham acesso e, nas últimas décadas, no variado e multiplicado escaparate de qualquer quiosque mostrando que não há herói, até desportivo, que não se espete numa curva da vida com o seu belo carrinho. O desequilíbrio entre os poucos ricos e os muito pobres que marcou gerações com memórias de fome passada na infância conduziu muitos portugueses mundo fora, numa mobilidade territorial de necessidade de sobrevivência mas também de afirmação.
Na volta, ao país ou tão só da cidade às suas terras, os seus corpos excessivamente bem nutridos anunciam prosperidade e, como calculam, nada melhor que uma grande casa para condignamente mostrar e, nela, um espaço pequeno, até pode ser a garagem, para aconchegadamente viver. E, não esqueci, o carro para a aldeia atravessar pois todos os que nela ficaram também não se perderam nesta competição e já nem ao café vão a pé!
No equilíbrio promovido, a corrente ofereceu à bicicleta o território por inteiro pois já não há caminho que não percorra. Foi esta descoberta do território que Pais de Brito evocou para lembrar como, interpreto eu, o paradigma do turismo se alterou e o ícone, o móbil da visita, não é o arquitetado mas o vivido, são os corpos que atravessam as ruas, as relações de proximidade e convivência que atrai o turismo. Então, alertava o professor, há um grande trabalho a fazer não só da parte das autarquias mas também da academia com a arquitetura, a engenharia e o urbanismo a projectarem outras e novas alternativas. Aliás, como Mário Alves mostrou, muitas delas já pensadas e, como o “ovo de Colombo”, cuja implementação seria bem mais barata que as obras que sobem o nível dos passeios tornando as estradas verdadeiros fossos onde só faltam crocodilos, ou talvez não.
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A história da bicicleta é fundamental para mostrar que as mudanças só aparecem depois desta articulação entre os vários elos, depois de criada a corrente. Foi a corrente que impulsionou a mobilidade humana e, do mesmo modo, é a junção de todas estas perspectivas e diferentes ideias que inspiram soluções para o incremento do uso da bicicleta. Foi a corrente que fez a bicicleta sair do espaço fechado do velódromo, do espectáculo de si, e a levou, estrada fora, para o imaginário da viagem, da volta ao mundo. E, desfecho, reforço a ideia de Pais de Brito, lembrando a necessidade de exploração por parte das escolas, das academias, das autarquias e das agências de turismo na busca inventiva de soluções para recuperar a energia gerada por estes corpos que pedalam de modo a usá-la na re-invenção do território tornando-o uma dimensão de brio da identidade local e pessoal.
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