A bicicleta: o valor da corrente para manter o equílibrio
Barómetro social - revista digital da universidade do Porto
2012
A bicicleta: o valor da corrente para manter o equilíbrio
Quem não tem uma história sobre a bicicleta? Mesmo que a história seja nunca ter consigo aprender a andar não deixa, por isso mesmo, de ser uma singularidade biográfica. Largar as rodinhas ou a mão que nos ampara o selim é um acto que tem tanto de libertação como de fé. Este afastar do controlo familiar é a antevisão de outros momentos de independência pessoal e, perante a incerteza no domínio do caos, a dúvida é o grande desafio no salto para o desconhecido e, anos mais tarde, não só rimos daquilo que para nós foi um grande feito como ainda já julgamos a vida à sombra de ditos como o de Einstein “para mantermos o equilíbrio temos de continuar em movimento!”.
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A bicicleta começa também por ser um objecto de recreação quando inventada há nem duas centenas de anos para, já no fim do séc. XIX, ser considerada uma alegoria aos valores do progresso acoplados ao desenvolvimento da ciência. A bicicleta vai para além do utilitário, fertiliza imaginários de aventura, preenche a visão personalizada e emocional romântica de frequentação da paisagem pelos passeios de cicloturismo, nos hipódromos é uma inovação e serve a distinção de classe, no velódromo com guiador rebaixado que curva o corpo para ganhar mais velocidade é dada a quem tem mais força. Esta postura, contrária ao porte aristocrático de cabeça erguida promovida pelo hipismo, é associada ao trabalho da forja, ao trabalho do operário na fábrica. A bicicleta populariza-se bem como o espectáculo da corrida, o hipódromo e o hipismo reforçam a distinção social e a bicicleta, neste contexto de afirmação social bacoca, é considerada o "cavalo dos pobres".
É o grande Tour de bicicleta que, inventado em 1903, virá a desenhar o contorno da pertença mostrando como uma corrida de bicicletas tem capacidades discursivas diversas, quando não contraditórias e, se por um lado, territorializa a identidade cultural, por outro lado, catapulta a mobilidade humana abrindo novas vias e espaços de partilha. É também este Tour que hoje celebra a abertura das fronteiras e festeja o poder da topografia da centralidade geográfica da França. E, qualquer que seja a escala de visibilidade mediática da corrida de bicicletas, o pódio é sempre a síntese de hierarquias sociais de poder político, económico e, também, desportivo. É no pódio que a história da bicicleta dá sinais da sua vitalidade revelando, primeiro, o sucesso da produção artesanal que, no período de entre-guerras, se automatiza para responder à produção de grande escala inspirando-se no fordismo e na “gestão científica” de recursos taylorista; até meados da década de 60 o uso da bicicleta floresce, especialmente ao nível utilitário da mobilidade pessoal. Em meados da década de 60 a grande corrida conhece o período de maior incerteza, o itinerário que percorre – o grande território – está saturado, é na montanha que descobre o desafio que alimenta a competitividade e promove o espectáculo. E passada uma década, nas cidades que atravessa, junto às bermas, já são mais os automóveis que as bicicletas. Aliás em Portugal há quase que uma simbiose entre o automóvel e a bicicleta porque, desde 1927, a organização da corrida foi sempre patrocinada por marcas de automóveis.
É também durante a década de 70 que nos países mais industrializados, como a Holanda, se vive a agonia de uma relação paradoxal resumida na máxima: “a cidade já não é possível sem o automóvel, a cidade já não é possível com o automóvel”. Esta frase emblemática caracteriza a relação entre a cidade e o automóvel como um beco sem saída, uma relação de impasse, um problema circular sem solução. E é na Holanda que aparecem os primeiros movimentos de constestação nos quais a bicicleta é tida como símbolo de revolução em prol de novas políticas que fomentem opções de mobilidade, que promovam relações de proximidade e melhoria da qualidade de vida. E, durante as décadas seguintes, as políticas públicas seguidas no planeamento urbano largaram a ideia da segregação funcional do espaço urbano e, neste sentido, a habitação, o emprego, a universidade e o comércio com as suas montras encontram-se mesclados, próximos entre si e/ou incluídos no desenho da rede de transportes públicos urbanos. A juzante, todo este conjunto de medidas possibilitaram a opção do uso da bicicleta na mobilidade urbana e, com isso, se desenvolveu também a autonomia de crianças e jovens que de outro modo, sem idade para carta de condução, estavam como hoje em Portugal dependentes das boleias dos pais.
A obra Cycling and Society (Horton et al, 2007) realiza uma súmula seminal sobre as alterações de significado da bicicleta na mobilidade urbana mostrando, em paralelo, como o automóvel ao nível económico lidera sectores icónicos da indústria capitalista da produção e, por isso mesmo, ao nível político tem maior poder de influência nas decisões sobre o ordenamento do território. Nem a bicicleta nem o automóvel são tecnologias neutras e, a partir do momento em que ligadas à mobilidade, são investidas de qualidades sociais e económicas e requerem políticas públicas de ordenamento do espaço e de definição moral do lugar de cada uma.
Da história da bicicleta interessa, ainda, salientar que as mudanças só aparecem depois de criada a corrente. A corrente devolveu à bicicleta o equilíbrio essencial ao deslocamento veloz, destronando o modelo de roda alta que literalmente, pelas quedas provocadas, tanta dor de cabeça deu. Vejam nesta alteração o valor, ainda que alegórico, de como a velocidade conseguida à custa do aumento de uma das rodas é tão perigoso. Resta-nos constatar a necessidade de exploração por parte das escolas, das academias, das autarquias e das agências de turismo na busca inventiva de soluções para recuperar a energia gerada por os corpos que pedalam de modo a usá-la na re-invenção do território tornando-o uma dimensão de brio da identidade local e pessoal.
HORTON, D, P. ROSEN and P. COX (2007) Cycling and Society, Aldeshot, Ashgate Publishing
SANTOS, A. (2011), A Volta a Portugal em bicicleta, territórios, narrativas e Identidades, Lisboa, Mundos Sociais.